Acompanhamos
um curso de formação de mão de obra evangélica
Em troca de
dedicação integral, quem segue carreira pode ganhar um salário de até R$ 22.000
por mês.
Silas
Malafaia em Águas de Lindoia: a organização do evento custou R$ 4 milhões
11.jan.2013
por João Batista Jr.
Era início
de tarde de uma terça-feira de dezembro quando um ônibus saiu da Igreja
Evangélica Assembleia de Deus do Bom Retiro, localizada na Barra Funda, rumo a
Águas de Lindoia. “Que Deus abra o caminho contra as sílabas do maligno”,
anunciou o guia da excursão, antes de o veículo dar a partida. Na cidade do
interior do estado ocorreria a quarta edição da Escola de Líderes da Associação
Vitória em Cristo (Eslavec), um dos maiores cursos nacionais para a formação de
pastores. Durante quatro dias, cerca de 5.000 alunos, vindos da capital
paulista, do interior e de várias regiões do país, compareceram ao intensivão
gospel, incluindo o repórter de VEJA SÃO PAULO, que pagou R$ 700,00 pela
inscrição e não se identificou como jornalista na ocasião.
O criador e principal instrutor do evento é o
religioso Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo,
que reúne 120 igrejas no Brasil. A entidade começou no Rio de Janeiro, onde
mantém até hoje sua base. Está entre as prioridades atuais acelerar a expansão
em São Paulo. Aqui, ele planeja abrir templo próprio em 2014 (por enquanto,
Malafaia prega semanalmente na Assembleia de Deus do Bom Retiro, de Jabes
Alencar) e mais de 250 outros endereços num prazo de dez anos.
No trajeto
de 180 quilômetros até Águas de Lindoia, foi possível começar a conhecer melhor
o público variado atraído pela Eslavec. Havia pastores formados que encaravam a
oportunidade como uma espécie de pós-graduação na área, muitos fiéis
interessados em transformar a vocação num trabalho remunerado (Malafaia chega a
pagar salários mensais de até R$ 22.000 aos maiores talentos) e alguns
curiosos. Quase todos carregavam uma Bíblia na mão durante a viagem. A maioria
dos rapazes vestia calça de tergal e camisa social, enquanto as mulheres
trajavam saia jeans até a altura do tornozelo. Destoavam apenas uma bolsa Louis
Vuitton no braço de uma senhora e um reluzente relógio Gucci no pulso de uma
dona de casa, moradora do bairro de Higienópolis.
No caminho,
um grupo se reuniu no fundo do ônibus para discutir assuntos variados.
Celebraram a maior presença evangélica na programação da Rede Globo, comentaram
o movimento homossexual (“É uma tirania, esse povo quer ter mais direitos que o
resto da população”, afirmou um homem) e esconjuraram o Carnaval (“Uma grande
tentação para os jovens”, definiu um senhor, sob os olhares de aprovação dos
demais). Uma mulher aparentando cerca de 40 anos contou que quase perdera a
oportunidade de estar ali devido a um acidente no qual rompeu o ligamento do pé
direito. “Entrei no Google para aprender alguns exercícios de fisioterapia,
ungi a região e agora estou nova”, explicou. O percurso de quase três horas
ocorreu num clima de tranquilidade, quebrado apenas numa ocasião pelo grito de
uma passageira. “Onde está o repelente, Senhor?”, dizia ela, incomodada com os
mosquitos zunindo sobre sua cabeça. “Misericórdia, meu Jesus!”, bufava,
enquanto desferia golpes no ar com um travesseiro.
Em Águas de
Lindoia, essa turma e as demais foram divididas em dezesseis hotéis do
município reservados exclusivamente aos evangélicos. No Casablanca, que
hospedou o repórter de VEJA SÃO PAULO, com diárias a partir de R$ 208,00 fora
do período do evento, o quarto era partilhado com outros três participantes,
todos eles pastores (um de Mato Grosso do Sul, outro do Maranhão e o último do
Pará). No frigobar, havia apenas água mineral e refrigerantes. Por ordem dos responsáveis
pela Eslavec, bebidas alcoólicas são proibidas durante os dias do curso. Os
organizadores investiram R$ 4 milhões para realizar o evento e distribuíram, de
graça, 3.000 matrículas num sorteio promovido pelo site da igreja de Malafaia.
Uma das contempladas, a paulistana Sarah Leitão, de 21 anos, diz ter recebido
um chamado de Deus para ser pastora. “Minha hora vai chegar”, confiava ela.
A apresentação
de Malafaia abriu as atividades, realizadas num centro de convenções. Quando
ele surgiu no palco, muitos levantaram seus smartphones e tablets para fazer
fotos e vídeos. Malafaia concentrou sua fala nas qualidades essenciais a um bom
líder. Entre elas, está a de sempre honrar o pacto de fidelidade à sua igreja
de origem, numa alusão clara aos que deixam os templos levando junto parte do
rebanho e do respectivo dízimo. “Temos de respeitar quem nos tirou a fralda no
Evangelho”, afirmou, ganhando aplausos do público. Antes de cada palestra, uma
espécie de supermercado da fé tomava conta do local, com anúncios de descontos
em livros, DVDs e CDs evangélicos. “Você compra com cheques para trinta ou
sessenta dias, revende ao pessoal da sua igreja e ainda ganha um cascalho”,
sugeriu Malafaia.
Outros
colegas deram prosseguimento aos trabalhos, enfatizando sempre as regras do
ofício que consideram sagradas. Quando um pregador for designado para uma
cidade distante da sua, por exemplo, deverá sempre comprar um imóvel para
estabelecer raízes e não se sentir um exilado. “A população local vê essa
atitude com bons olhos”, disse o pastor Silmar Coelho. Adultério e prática
homossexual são pecados imperdoáveis. Para deixar claro quanto a família é
importante, a mulher do religioso deve estar sempre presente nas atividades e
orações. “Ajuda a não dar margem a fofocas”, justificou Coelho, usando em
seguida um exemplo pessoal para reforçar esse ponto de vista. “Quando minha
esposa estava grávida, chegou a acompanhar meu culto, mesmo sofrendo graves
dores nas costas”, relatou. Mais aplausos da plateia.
Num
cercadinho onde só entravam convidados da organização, havia uma área vip para
alguns estudantes, ocupada por pessoas como Sarah Sheeva, uma das filhas do
casal de cantores Baby do Brasil e Pepeu Gomes. “Fui ungida pastora adjunta da
minha igreja no Rio, a Celular Internacional, então não ganho salário e vivo da
venda dos meus livros”, afirmou. As obras em questão são de literatura gospel —
Onde Foi que Eu Errei, sobre a aflição dos pais que se perguntam por que os
filhos foram para o caminho errado, e Defraudação Emocional, título de
autoajuda para evitar tropeços na vida sentimental.
Outra grande
estrela da Eslavec foi o americano T.D. Jakes, da Potter’s House, de Dallas,
uma das maiores igrejas evangélicas dos Estados Unidos. Em seu currículo,
constam feitos como a realização do discurso de despedida no funeral da cantora
Whitney Houston, em fevereiro de 2012. “Ele cobra US$ 300.000 por palestra, mas
para mim fez por US$ 60.000”, contou Malafaia. A cada fala do americano, um
negro forte e alto, o pastor Gidalti Alencar, baixo e mirrado, traduzia sua
fala remedando seus gestos com as mãos. “Os jovens estão com a força e devem
assumir a vocação que Deus lhes deu, conquistando fiéis com a palavra do
Senhor”, pregou o bispo de Dallas. Numa de suas aulas, pediu aos alunos entre
18 e 25 anos que entoassem uma oração à meia-noite daquele dia. Aplicados, os
aprendizes promoveram rezas, gritos e cantorias no horário combinado, fazendo com
que os hotéis onde estavam hospedados tivessem um clima de rave de Jesus.
Nos últimos
anos, os evangélicos vêm crescendo rapidamente no país. Só na cidade de São
Paulo, os adeptos passaram de 1,6 milhão de pessoas, em 2000, para 2,5 milhões,
em 2010, representando hoje 22% da população da metrópole. Com mais rebanho
para cuidar, aumentou também a necessidade de acelerar a formação dos pastores.
O evento da Eslavec é um exemplo do atual grau de profissionalização do
negócio. “Temos muitos pastores em ação, mas poucos são verdadeiramente
qualificados”, afirmou Malafaia.
Na capital,
atuam aproximadamente 30.000 líderes da religião, segundo estimativa do
Sindicato dos Ministros de Cultos Religiosos Evangélicos e Trabalhadores
Assemelhados do Estado de São Paulo. Criada em 1999, a entidade surgiu com o
objetivo de garantir os direitos trabalhistas da categoria. “Para não
aumentarem seus custos, alguns donos de igrejas não remuneravam de forma
adequada, e a Justiça demorou a aceitar que essa era uma profissão como as
outras, com direitos e deveres da parte do empregador e do empregado”, explica
José Lauro Coutinho, pastor da Assembleia de Deus e fundador do sindicato.
Segundo seus cálculos, cerca de cinquenta evangelizadores moveram ações nos
últimos dez anos cobrando dívidas e pedindo indenizações.
Atualmente,
de modo geral, a política das principais igrejas é valorizar a mão de obra,
protegendo-a da cobiça das concorrentes. Comuns no meio corporativo, as
estratégias para reter talentos e premiar funcionários que cumprem metas de
lucros foram incorporadas ao mundo neopentecostal por Edir Macedo, da Igreja
Universal do Reino de Deus. Nos anos 90, quando ela passava por um forte
processo de expansão, Macedo criou um meio de supervisionar seus encarregados.
Eles permaneciam, em média, de um a dois anos em um templo para evitar que
saíssem para abrir a própria igreja, levando os fiéis.
Rvista Veja - São Paulo